Ciência avança em novos tratamentos para o HIV

Foi pelas mãos dos cientistas franceses Luc Montagnier (1932-2022) e Françoise Barré-Sinoussi, em 1983, que o mundo da ciência vislumbrou pela primeira vez o vírus HIV, causador de uma doença severa que ataca o sistema imune. Naquela época, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), cercada de preconceito, chegava a ser chamada pela infeliz alcunha de “câncer gay”.

A terminologia fazia alusão aos primeiros grupos a serem acometidos pela infecção nos Estados Unidos, ainda em 1981. Não demorou muito, porém, para que o vírus irradiasse para homens heterossexuais, mulheres e até crianças, tornando-se um problema global de saúde pública.

A descoberta de Montagnier e Barré-Sinoussi abriu caminho para cientistas buscarem testes de detecção do vírus e drogas que oferecessem ao corpo alguma chance de defesa. Passados mais de quarenta anos desde os primeiros casos, hoje a medicina compreende muito bem a ação do HIV no organismo.

Ao longo dessas décadas, desenvolveu cerca de três dezenas de fármacos antiretrovirais, de uso combinado, capazes de inibir a replicação desse agente infeccioso no sistema imune, impedindo que ele aplaque as defesas do paciente e evitando que desemboque em quadros de Aids. Assim, rompe-se a cadeia de disseminação do vírus, uma etapa fundamental para o controle da epidemia.

O problema é que nem todos tomam os comprimidos na regularidade exigida e algumas pessoas, por conta das falhas no tratamento, deixam de responder bem às drogas existentes. Ciente das limitações, a comunidade científica seguiu em busca de avanços. Novas apresentações dos medicamentos (em dose única ou injetáveis) começam a passar pelo crivo de agências reguladoras mundo afora. Também estão na mira dos pesquisadores mais de 20 imunizantes em fases de desenvolvimento, segundo a Iniciativa Internacional pela Vacina da Aids (IAVI). Um deles é testado no Brasil.

“É um momento promissor, de otimismo. Os pesquisadores avançam em novas classes de medicamentos, inclusive inovações para as pessoas que apresentam resistência após falha em tratamentos anteriores. A chegada de novas drogas sempre abre novas esperanças”, afirma Valdez Madruga, coordenador do Comitê de HIV/Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia

Entre as celebradas inovações recentes há o programa de inclusão de um novo medicamento injetável, o primeiro desse tipo, no SUS. O estudo será operacionalizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a partir do segundo semestre deste ano, pois ainda precisa passar por aprovações, e mirará nas populações de alto risco de infecção pelo vírus, caso dos jovens, por exemplo.

Com ação durável, o medicamento retira a necessidade de pílulas de uso diário, o que reduz a brecha para falhas no tratamento e, por consequência, a redução da efetividade dos fármacos. Sua aplicação dura dois meses, portanto requer somente seis injeções ao longo de todo um ano.

Essa apresentação do princípio ativo cabotegravir é dedicada à PrEP – a profilaxia pré-exposição –, cuja função é prevenir a infecção pelo HIV em indivíduos saudáveis que têm comportamentos de risco. No Brasil, aproximadamente 33 mil pessoas fazem uso desse método de cuidado com drogas orais hoje.

“É uma nova estratégia altamente eficaz para prevenir a infecção para HIV. A pessoa poderá usá-la somente nos períodos em que estiver mais exposta ao vírus. Se essa pessoa, porém, estiver constantemente com risco aumentado de adquirir o HIV, ela precisará aderir à PrEp continuamente, e aí o injetável torna-se uma opção ainda mais atraente”, diz Beatriz Grinsztejn, chefe do laboratório de Pesquisa Clínica em DST e AIDS do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz.

Claudia Velasques, diretora e representante no Brasil do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e AIDS (Unaids) ainda elenca mais um avanço importante e recente: em 2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou uma droga que combina dois princípios ativos: o dolutegravir com a lamivudina. Este, vale dizer, para tratamento de pessoas já identificada com o vírus.

“Apesar de não serem composto novos, a combinação desses dois princípios ativos em um mesmo comprimido é inédita no país e contribui para a adesão ao tratamento, uma vez que a pessoa precisa tomar apenas um comprimido por dia”, afirma.

Ambas as inovações estão sob o guarda-chuva da farmacêutica GSK, que quer ainda a aprovação do cabotegravir injetável, em parceria com outra droga da farmacêutica Janssen, para tratamento de HIV no Brasil. A combinação ainda deve ser avalizada pela Anvisa para ser usada no país.

“Quanto mais fácil e cômodo o esquema terapêutico, melhor a adesão. Os estudos mostram que quanto menos comprimidos e quanto menos tomadas diárias requer o tratamento, mais fácil é sua continuidade” diz Rodrigo Zilli, diretor Médico da área de HIV da GSK.

Em outra ala de desenvolvimento, duas dezenas de vacinas dedicadas à prevenção da infecção também acumulam avanços. A farmacêutica americana Moderna, responsável por uma delas, começou neste ano a fase 1 de desenvolvimento — aquela dedicada a averiguar a segurança de um fármaco — de uma vacina que utiliza a plataforma de RNA mensageiro, costumeiramente ligada a altas taxas de eficácia, conforme foi possível observar com os novos imunizantes para Covid-19.

Mais avançado está o chamado “estudo Mosaico”, cujo desenvolvimento inclui centros de referência brasileiros, caso do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e do Hospital das Clínicas, ambos em São Paulo. O estudo está na fase 3 e já recrutou todos os 3,6 mil voluntários necessários. A vacina utiliza tecnologia semelhante à utilizada pelo antígeno da Universidade de Oxford e da AstraZeneca contra a Covid-19.

“Já temos resultados da fase pré-clínica realizada em primatas, que foi de 67% de proteção em exposições desprotegidas. É algo inédito em vacinas nesse estágio para HIV”, diz Bernardo Porto Maia, infectologista do Emílio Ribas e um dos líderes do estudo.

A previsão mínima para avaliar a eficácia é para início de 2023, acrescenta.

Todas essas novidades figuram como avanço valioso para a saúde no país. A cada dia, cerca de 90 brasileiros recebem o diagnóstico de que foram infectados pelo vírus HIV, de acordo com a média de notificações enviadas ao Ministério da Saúde nos últimos anos. Em todo o mundo, são 38 milhões de pessoas convivendo com o vírus. As persistentes taxas de transmissão, inclusive, fazem necessário repetir: os principais meios de transmissão continuam sendo as relações sexuais desprotegidas e o compartilhamento de itens perfurocortantes sem a devida higiene.

Sem mecanismos replicáveis em larga escala para alcançar a cura — alguns métodos de transplante de medula apresentaram resultado positivo para eliminar o vírus — , fortalecer as frentes de prevenção, tratamento e imunização são as principais armas do arsenal contra a infecção.

“O vírus tem uma capacidade de ficar latente em algumas células do corpo, que são reservatórios do HIV. É como se ele dormisse, sem se replicar, mas continua viável dentro das células. Ainda não conseguimos atingi-lo, a não ser impedindo sua replicação”, explica Bernardo Porto Maia.

Com as novas estratégias disponíveis, porém, a briga contra o HIV aponta para a vitória da ciência.

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