O que seus filhos assistem na internet?

Volta e meia flagro minha filha de seis anos assistindo algum desenho animado que não serve para ela. No máximo, serviria de exemplo daquilo que não se deve dar atenção. É óbvio que uma criança dessa idade não tem o senso apurado para conteúdos verdadeiramente relevantes, até porque, essa é a fase inicial da formação da imaginação moral que mais tarde servirá de base decisiva, não só para eleger ou rejeitar tais conteúdos, mas para arbitrar os momentos mais importantes da vida.

Estudando um pouco o modo de funcionamento da imaginação humana descrita por Aristóteles, nota-se que o “perigo” de qualquer história, seja ela em forma de filme, desenho animado, livro, ou até mesmo oral, consiste, não na história em si, mas na estrutura geral que se fixa na imaginação do espectador, ou seja, depois de assistir ou ouvir uma história qualquer, é possível não lembrar-se da história inteira posteriormente, mas algo da história gruda no “motor” da imaginação como uma espécie de arquétipo, do tipo: quem ou o que foi bom ou ruim; se algo ou alguém foi certo ou errado; em que circunstâncias foram suscitados sentimentos como temores e desejos, etc. Estas estruturas se integram na visão de mundo do espectador, servindo-lhes de base de comparação e medida de aferição do (verdadeiro ou ideal) nas situações reais que tenham algum tipo de relação com o conjunto imaginativo do sujeito.

Culturalmente, a era das historinhas que ensinam algo importante sobre a vida, já cedeu totalmente à era da animação tridimensional de pouca utilidade. Censurar más histórias infantis – e elas são muitas na internet –, é uma das obrigações fundamentais dos pais hoje em dia. É evidente que esta censura tem de ser abandonada gradualmente conforme a criança vá amadurecendo. Ninguém pretende que uma criança de seis anos, ao assistir Otelo – mesmo dotada de paciência e atenção –, assimile o complexo imaginativo, que vai da visão superficial do ciúme e tragédia à analogia com o livro de gênesis, ou, ao assistir A Pequena Loja de Suicídios, absorva apenas as animações em si, sem o apelo imaginativo à desgraça. Entretanto, lembra o professor Francisco Escorsim: “a obra de arte não se limita pela moralidade (o que a esteriliza e a torna proselitista), mas seu limite é o possível, o que significa que o imoral pode e até deve ser retratado”.

Quando entrou em cartaz o filme Esquadrão Suicida, meu filho de quinze anos foi assistir. Passados nove meses – por ocasião de escritos sobre este mesmo assunto –, pedi que me contasse a história do filme, e ele contou com alguma dificuldade para lembrar a história inteira, no entanto, quando pedi que resumisse, disse ele: “foram convocados vários bandidos com a missão de salvar o mundo”. Ou seja, este é o resumo fixado na memória, e numa situação real análoga, será quase inevitável para a imaginação dele, considerar a decorrência lógica: Nem sempre os bons podem nos salvar e às vezes precisamos recorrer aos maus para fazer isso. Logo, os maus também podem nos salvar.

Em verdade, é esta espécie de ganho simbólico que está a povoar o imaginário de crianças e adolescentes e a transformá-los no modelo de juventude que estamos acostumados a ver; totalmente inermes a inversão de valores, profundamente avançada em nossa sociedade. Estou me atendo aqui, apenas a esfera de contos, desenhos, filmes, etc. Entretanto, há também, a formação do imaginário pela versão do sistema educacional, tema que tratarei em outro artigo.

Outro fato que chama atenção, são as mudanças propositais nos enredos de histórias e contos clássicos. Com o passar do tempo, além das histórias infantis de alto valor moral terem sidos abandonadas na medida em que foram aparecendo histórias visualmente mais elaboradas, – por tanto, enfatizando o aspecto estético em detrimento de algum ensino de real valor –, os clássicos sofreram alterações sistemáticas, no mais das vezes, invertendo a “moral da história”. Exemplos de contos clássicos originais, podem ser encontrados nos dois tomos: Contos maravilhosos infantis e domésticos editados pela Cosac Naify, com 156 histórias publicadas em 1812 e 1815. Nestes contos, verás que a imaginação das crianças não era poupada de cenas tenebrosas, porém, riquíssimas moralmente. Um dos argumentos que “justificaram” modificações atenuantes posteriormente, é o de que: “cenas assustadoras podem traumatizar as crianças”. De minha parte, lembro da época em que morei com meus avós paternos, e não havia uma só criança na rua, que não conhecesse a história do papa-fígado e do bicho papão. Àquele comia o fígado, e este, comia a criança inteira que estivesse na rua após as nove horas da noite. Evidentemente ficávamos muito assustados e até chorávamos, mas o fato é que funcionava e quase sempre dormíamos cedo. Hoje não carrego trauma algum por isto.

Ao longo do tempo, vários contos populares como o que acabei de citar, foram esquecidos. Concomitantemente, muitos clássicos infantis veiculados nos gibis e na televisão, foram atenuados, diminuídos e até invertidos a exemplo de: Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Rapunzel, etc. Um exemplo recente de total modificação no sentido moral é a adaptação cinematográfica de Chapeuzinho Vermelho em A Garota da Capa Vermelha (2011) onde a chapeuzinho deixa de ser uma inocente criança e passa a ser uma garota a viver uma paixão proibida, típica de novela das oito.

É inegável que desenhos como Pica-Pau, Pernalonga ou Tom & Jerry; filmes como Velozes e Furiosos, Esquadrão Suicida ou Deadpool, enraízam na cosmovisão de crianças e adolescentes, um certo “valor” à atitudes insanas, à impunidade e naturalmente à criminalidade. Isso pelo fato da fragilidade natural do censo crítico nessa faixa etária. Esses arquétipos fundamentam no imaginário, a incapacidade de indignar-se ante a situações reais que correspondam à essas estruturas, e a dessensibilizar-se com o verdadeiro fio da justiça.  Pais que gastam parte do salário em TV por assinatura e creem oferecer o que há de melhor aos filhos – não digo nem em termos educativos, mas apenas recreativo –, se assistissem desenhos como Star vs. as Forças do Mal, do Disney Channel, mostrando crianças dando beijos gays, e filmes como A Pequena Loja de Suicídios; quem sabe, repensassem a gravidade do papel que lhes foi conferido por Deus.

Em suma: se antes de qualquer ação é necessário pensar, e o pensamento é, por assim dizer, feito de imaginação; e se o conjunto de possibilidades imaginativas do indivíduo pensante é pobre ou invertido em relação à realidade, quão frustrado não será o resultado de suas ações práticas. E é nesse turbilhão de histórias novas e adaptadas, que é necessária uma verdadeira expedição para desencavar algo que, além de entreter as crianças, tenha algum efeito educativo na construção imaginária e hierárquica dos valores fundamentais para a vida, em contrário aos meros musicais hipnóticos e historinhas nonsense que só corrompem, manipulam e atrofiam a imaginação.

Não pretendi abordar todo o panorama da educação do imaginário, muito menos abarcar a seara da educação moral, mas apenas, intensificar a minha consciência sobre o assunto, pincelando alguns aspectos que acho importantes e necessários nos dias atuais.

Por Victor Fidel

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Cosmovisão, literatura e memória
http://www.isidorodesevilha.com.br/lessons/perguntas-e-respostas-cosmovisao-literatura-e-memoria/

Otelo e o Gênesis
http://www.icls.com.br/aula/leitura-dos-classicos-aula-4/

A Pequena loja de suicídio
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-147453/

Esquadrão Suicida
https://pt.wikipedia.org/wiki/Esquadr%C3%A3o_Suicida_(filme)

Contos maravilhosos infantis e domésticos
https://www.amazon.com.br/Contos-Maravilhosos-Infantis-Dom%C3%A9sticos-Irm%C3%A3os/dp/8540509075

A Garota da capa vermelha
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-170918/

Star vs. as Forças do Mal
http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/disney-exibe-beijo-gay-pela-primeira-vez-em-desenho-animado.ghtml

2 Comentários

  1. jessica

    31 de maio de 2017 em 19:40

    interessante parabéns, Vitor Fidel e Edenevaldo

  2. Saragy

    2 de junho de 2017 em 06:57

    Faço de sua consciência a minha!!! Parabéns pelo artigo!

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